Sergio Lessa
Passados pouco mais de nove meses do governo
Bolsonaro, é hora de uma avaliação, por mais preliminar, dos fundamentos sociais
de sua dinâmica tendo em vista o levantamento de alguns elementos que auxiliem na
discussão de uma tática para seu
enfrentamento. Para tanto, é imprescindível que iniciemos com algumas observações acerca da
burguesia, do estamento político-burocrático e da aristocracia operária.
A burguesia interna
Nos anos de 1960 predominava a visão segundo a
qual o Golpe de 1964 teria sido o fim de uma burguesia nacional, portadora de
um projeto nacionalista e que encarnava a possibilidade de um capitalismo
nacional e soberano. Era afirmado que, com a Ditadura Militar teria saído vitoriosa,
contra a burguesia nacional “patriótica”, a aliança “entreguista” das
oligarquias com o capital estrangeiro. Tal visão enxergava no Golpe Militar a
retomada, nas condições históricas de 1964, da continuidade do
desenvolvimento que se estende deste 1500: brutal concentração de renda, não menos
brutal exploração dos trabalhadores e o envio para os países imperialistas das riquezas aqui
produzidas. Se Caio Prado Jr. é o clássico desta vertente, Otávio Ianni, em
O colapso do populismo, possivelmente
tenha delineado o quadro plasticamente mais claro desta concepção: a
industrialização pela substituição das importações, que predominou desde 1930
até 1955, entrou
em seu ocaso com o Golpe Militar. Este teria inaugurado uma nova etapa econômica,
centrada na exportação de bens primários e na entrada maciça das
multinacionais (o desenvolvimento associado ao capital estrangeiro, como ele
denominou).
Hoje é questionável, para se dizer o mínimo, até mesmo a
existência de uma
tal burguesia nacional “patriótica” e, por consequência, da
exequibilidade histórica de uma frente nacional-desenvolvimentista
anti-imperialista no período posterior à Segunda Grande Guerra. Um dos
elementos históricos que mais pesam nesta revisão são as inúmeras linhas de continuidade que
articulam a burguesia do pós-guerra à burguesia dos nossos dias. Muito
mais do que ruptura, parecem ser os traços de continuidade o momento
predominante nesta evolução
Outros elementos podem também ser
citados: o apoio de importantes setores da burguesia ao Governo Dutra, a oposição da mesma
burguesia ao segundo governo Getúlio e o seu apoio às tentativas
golpistas interrompidas pelo suicídio de Vargas em 1954 e, por fim, o
significativo apoio desta mesma burguesia ao Golpe de 1964. Em todos estes
momentos chaves, a tal burguesia nacionalista, interessada em um capitalismo
autóctone e
soberano, não se fez presente ou se fez de modo débil. Mesmo naqueles anos em que seu
capital era fundamentalmente nacional, ainda não internacionalizado, a burguesia no
Brasil esteve longe de ser portadora da possibilidade de um capitalismo autóctone, de um
projeto nacionalista. As vacilações de Jango Goulart nos dias do golpe, a falta de
uma base parlamentar antigolpista mais sólida, a incapacidade do movimento
camponês e operário (e do PCB
e de outras organizações da esquerda) em montarem uma resistência digna do
nome etc. são também expressões vivas da carência de base social real para o
projeto capitalista-nacionalista que, se pretende, teria sido destruído em 1964.
Do conjunto das razões históricas que estão na inexistência de uma
burguesia nacional, na acepção do termo, ocupa lugar decisivo o fato de que o
capital da industrialização pela substituição das importações ter sido
oriundo do Ciclo do Café, o que fez da burguesia, naquelas condições de
industrialização limitada, uma classe com intensos laços econômicos, sociais e políticos com a
oligarquia tradicional.
O Golpe de 1964 não foi uma ruptura tão profunda e
uma virada tão radical em nossa história quanto se concebia. A cassação de
parlamentares, a censura à imprensa, o fechamento de partidos e sindicatos
foram as medidas necessárias para a implementação das
reformas econômicas de Roberto Campos. Estas, ao abrirem o país às
multinacionais, aprofundaram a crise econômica já instalada, promoveram uma onda de
falências, um aumento
do desemprego e ainda mais miséria. Isto até os anos de 1968-9, quando se iniciou
o Milagre Brasileiro. Ainda que parte dos empresários nacionais tenha quebrado nestes
anos, a fatia mais importante da burguesia brasileira apoiou ou se adaptou à nova
realidade econômica e, mais cedo do que mais tarde, tirou proveito da entrada do
capital estrangeiro, da ampliação da produção industrial promovida pelas
multinacionais, do crescimento urbano trazido pela industrialização acelerada e
das novas possibilidades econômicas inerentes ao aumento do capital em circulação.
A existência de um projeto nacionalista que
teria por base a burguesia brasileira não passou, ao fim e ao cabo, de uma
grande ilusão. Uma grande ilusão que se baseia em outra não menor,
ainda viva entre nós: a da possibilidade de um capitalismo nacional
que não sirva ao
imperialismo, que mantenha no Brasil as riquezas aqui produzidas para promover
uma distribuição de renda que alavanque o crescimento do mercado interno e da indústria
nacional. No final dos anos de 1980, esta ilusão se renovou e adquiriu uma nova
formulação: mesmo se
mantendo o capitalismo, seria possível a realização entre nós de um
Estado de Bem-estar e, assim, realizaríamos aqui o capitalismo de face
humana tão propalado
pela esquerda democrática. O fracasso estratégico dos
governos petistas deveria ter enterrado definitivamente esta ilusão, mas isto
ainda está para ser visto.
Não se pode encontrar na história do país uma tal
burguesia anti-imperialista e disposta a se aliar aos operários e
trabalhadores, aos camponeses e aos intelectuais, ao redor de um projeto de
desenvolvimento do capitalismo nacional. Caio Prado Jr., Celso Furtado, Nelson
Werneck Sodré e tantos outros foram vítimas de um perverso artifício metodológico, o de se
deduzir a história a partir de categorias a
priori. Como ocorre com frequência, este artifício metodológico se apoia
em uma concepção e um projeto políticos. No caso em questão, na ilusão de que no pós Segunda
Grande Guerra estaria aberta a possibilidade de um ruptura definitiva do Brasil
com seu passado colonial através de uma frente nacionalista e democrática de operários e demais
trabalhadores com a burguesia. Pelo contrário, o que se mostrou historicamente
viável foi o
fortalecimento e desenvolvimento do essencial do nosso passado colonial.
Após a década de 1970, a profunda
industrialização do país com base nas multinacionais levou à internacionalização do capital
nacional e alterou o perfil das classes sociais. A classe assalariada urbana se
expandiu junto com o crescimento das cidades e a classe operária ganhou
sua primeira feição fordista. Mesmo a burguesia que reproduz seu
capital no país articulou-se, pelos incontáveis liames do capital financeiro, ao
grande capital internacional, ela é antes uma burguesia interna que se reproduz em articulação com o
imperialismo do que uma burguesia nacional, no sentido de ser portadora da
possibilidade de uma alternativa anti-imperialista.
Este desenvolvimento conduziu ao amadurecimento de uma
burguesia homogênea e unificada no que diz respeito ao acordo em
se manter subordinada ao grande capital mundial e, contudo, contraditória e heterogênea quando se
trata da divisão entre os seus setores da mais-valia extraída dos operários e
trabalhadores produtivos no território nacional. Nada surpreendente se
levarmos em consideração que no último quarto do século 20 a
intensificação da internacionalização da economia nacional partiu de um estoque já existente da
burguesia local, estoque este que possibilitou uma simbiose do capital local
com o internacional. O grande capital precisou realizar menos investimentos na
medida em que pôde contar com um capital local que, de boa
vontade, se adaptou às demandas postas pelo capital internacional e,
por sua vez, o capital local pôde elevar sua lucratividade e sobreviver em uma “parceria” em que é sócio menor do
imperialismo mundial. Aceito o seu caráter subordinado, a “sinergia” do capital
local com o mundial tornou-se uma possibilidade muito lucrativa. Foi assim que
a internacionalização da economia brasileira no período
neoliberal desenvolveu também a burguesia interna ao lado e em articulação com a
burguesia internacionalizada e o capital mundial.
De FHC a Lula
Entre a “era FHC” e a “era Lula”, temos um
aumento da presença da burguesia interna no centro do poder
executivo. Enquanto nos governos FHC, o centro de gravidade do poder executivo
estava com o capital internacional e seus sócios internos, nos governos petistas
ele se deslocou em direção à burguesia interna, sem com isso,
obviamente, promover uma ruptura com o capital internacionalizado e o capital
mundial. Pois, entre outras coisas, há divergências e disputas típicas da
concorrência entre os
diferentes setores do capital pela apropriação da riqueza produzida no país, mas não um autêntico
antagonismo entre a burguesia interna e o restante do capital. Por vezes – como se deu no
início dos anos
Lula – o
desenvolvimento de um setor é mesmo compatível ou complementar com os interesses
do capital no seu todo.
A burguesia interna, então, tentou sua cartada mais ousada:
constituir a si mesma como um elo internacional da cadeia imperialista, um elo
que exploraria as nações mais atrasadas que o Brasil naqueles “nichos” que não
interessassem ao grande capital internacional ou nos quais pudesse com sucesso
concorrer com ele. O fato de o apoio do Estado ser fundamental a este projeto
resultou em que esta camada da burguesia se tornou tanto mais dependente do
Estado quanto, no Estado, o poder do estamento político-burocrático cresceu
na medida em que aumentava a importância dos investimentos estatais na
economia (votaremos sobre este aspecto logo abaixo).
Ilustrativo, nesta contraposição entre a era
FHC e a era petista, as diferenças entre duas figuras oriundas da esquerda estudantil
dos anos da Ditadura: Sergio Motta com as privatizações nos
governos do PSDB e José Dirceu e a tentativa de montar uma base
parlamentar para a aliança do PT com a burguesia interna (o mensalão). No
primeiro caso, tivemos a privatização do capital estatal mais
lucrativo e sua entrega ao grande capital internacional; no segundo, a busca de
uma base parlamentar para a política petista mais próxima à burguesia
interna do que nos anos FHC. Quando da
descoberta do pré-sal, esta contraposição tornou-se
ainda mais clara. O PSDB e o DEM defendendo a entrada do grande capital mundial
contra as políticas petistas que reservavam uma porção significativa do
empreendimento à burguesia interna.
O primeiro elemento que nos parece importante para
entendermos os primeiros meses do governo Bolsonaro é este: a
derrota do PT é também uma derrota da burguesia interna vis-à-vis a burguesia
internacionalizada e o capital internacional. Esta derrota é a prova prática
definitiva da impossibilidade de um capitalismo nacional que seja algo mais que
a submissa extensão local do grande capital imperialista. É o enterro prático, se não teórico, de todo
delírio
nacionalista ou patriótico, mesmo que encarnado no sonho petista de
promover “multinacionais” brasileiras.
A aristocracia operária
O segundo elemento é o aparecimento em nossa história da
aristocracia operária a partir dos anos de 1980. Articulada às modificações na
burguesia acima delineadas, a transformação da base econômica no período pós-64 deu
origem a uma classe operária distinta da dos anos Getúlio Vargas. Comparada com o
proletariado do período entre 1930 e 1964, é agora
geograficamente muito mais concentrada (fundamentalmente em São Paulo, Rio
de Janeiro e Belo Horizonte); muito mais concentrada em enormes plantas
industriais (as montadoras do ABC, por exemplo); muito mais fortemente marcada
pela organização de trabalho taylorista. Foi neste novo contexto que tivemos não apenas o
surgimento de uma classe operária mais numerosa, mas também de uma
classe internamente mais heterogênea. Parte importante desta
heterogeneidade foi marcada pelo crescimento da importância da mais-valia
relativa (tanto pelo desenvolvimento tecnológico quanto pela industrialização dos bens de
primeira necessidade) que, por sua vez, serviu de base social para o
desenvolvimento da aristocracia operária.
Uma classe operária jovem, sem experiência política, marcada
pela ascensão social promovida pela transição da vida rural à urbana,
surgiu tendo já como liderança uma aristocracia operária com
consciência e força social
necessárias para
arrebentar o velho sindicalismo pelego dos anos da Ditadura e o substituir pelo
“sindicalismo
autêntico”. As greves
de 1978-9 marcaram a entrada em cena deste novo, jovem e imaturo proletariado
liderado por uma aristocracia operária que em poucos anos se
consubstanciaria em autêntica burocracia sindical e partidária. Como
dizia Carlos Nelson Coutinho nos momentos em que manifestava seu espanto com a
involução política do PT e
da CUT, no Brasil completou-se em alguns poucos anos a trajetória dos
organismos sindicais e políticos de base operária em direção à burguesia que,
na Europa, levou décadas.
Não é necessário descrever o processo que levou o
PT das suas origens à “Carta aos brasileiros” de 2001 e
aos acordos que possibilitaram a vitória do PT na eleição
presidencial daquele ano. O que queremos assinalar é que esta
trajetória é também a montagem
e consolidação de uma aliança entre a burguesia interna e o PT que, no final
dos anos FHC, contou também com a complacência e mesmo apoio de parcelas da
burguesia internacionalizado e do capital internacional. Nos anos até 2008, a
economia brasileira foi favorecida pela entrada em larga escala de capitais
internacionais e os petistas viveram seu apogeu. Graças a um
programa de estímulos econômicos que transferia recursos públicos ao
capital privado, aos elevados lucros dos bancos e industrias, ao financiamento
promotor da expansão do agrobusiness,
a um programa federal de distribuição de alguns poucos reais aos
miseráveis (Bolsa
família, bolsa gás, bolsa
escola etc.) que lembra mais esmolas do que qualquer outra coisa e, por fim, a
uma taxa de desemprego mais baixa, Lula se tornou unanimidade, de Barack Obama
ao miserável
nordestino.
Esta aliança da aristocracia operária com o
capital “interno” e “internacionalizado” teve três consequências a serem
assinaladas. 1) A primeira foi a realização, nas condições históricas
brasileiras, de algo similar à aliança da aristocracia operária dos países
imperialistas com as suas burguesias que caracteriza o Estado de Bem-Estar e, depois, com o período “trabalhista” ou “socialista” do
neoliberalismo (quando muitos partidos surgidos de base operária se
prestaram a levar avante as reformas neoliberais que os partidos burgueses
tradicionais não mais podiam fazer). Em nosso país, esta aliança serviu de
base para as ilusões de que um Estado de Bem-estar estaria surgindo
entre nós com a “colocação em prática” da Constituição de 1988
pelos governos petistas. Diferente dos países imperialistas centrais, no caso
brasileiro esta aliança já nasceu no período de
desaparecimento do Estado de Bem-estar e cumpriu apenas o papel de aprofundar
entre nós o neoliberalismo.
Também por esta
razão perdurou
por um período muito mais curto do que nos centros do imperialismo.
2) A segunda delas foi uma integração ao Estado,
como nunca antes em nossa história, dos sindicatos, centrais sindicais e, por
extensão, dos movimentos
populares. Os mecanismos de contestação da ordem que haviam surgido
sob a Ditadura Militar foram, um a um, sendo absorvidos e cooptados pelo
Estado. Desde o Orçamento Participativo, “o modo
petista de governar” até a “República dos sindicalistas” do primeiro
governo Lula, os mecanismos dessa cooptação foram variados, mas o
resultado foi sempre o mesmo. Nos sindicatos, o fortalecimento da burocracia
quase sempre oriunda da aristocracia operária e o firme controle do movimento
contestatório das bases. Típico desta degenerescência foi a
CUT. Nos movimentos populares foi sua domesticação, quer pelo crescente
eleitorialismo de seus dirigentes, quer pela cooptação por meio de
cargos e verbas estatais. O mais melancólico processo neste sentido foi, sem
dúvida, o do
MST.
3) A terceira delas teve lugar nos momentos finais do
governo Dilma. Ao se anunciar a derrota dos petistas, a CUT deixou os “companheiros” do PT na
chuva. A burocracia sindical (oriunda da aristocracia operária) manobrou
no sentido de manter aberto sua “interlocução” com os donos
do poder. Se opuseram apenas pro forma
ao impeachment da Dilma, se
dispuseram a dialogar com Temer, colaboraram com a Reforma Trabalhista de Temer
e com a Reforma da Previdência de Bolsonaro organizando pífias manifestações e desmobilizando
a luta. A aristocracia operária revelou, uma vez mais, sua verdadeira alma: “lugar-tenente
da burguesia no interior do movimento operário” (Engels): nem para os petistas ela
se revelou um aliado seguro!
A presença e a atuação da
burocracia sindical a partir de sua base social na aristocracia operária é o segundo
elemento importante para compreendermos os primeiros nove meses do Brasil sob
Bolsonaro. Ela é decisiva para manter a classe operária e os
trabalhadores paralisados ante as inúmeras derrotas dos últimos anos.
O terceiro elemento importante é o estamento
político-burocrático.
O estamento
político-burocrático
A independência relativa do Estado
para com as classes sociais, em particular para com as classes dominantes, tem
no estamento político-burocrático uma das suas mediações decisivas. A
independência existe porque não há identidade entre as classes dominantes no
seu conjunto (o que inclui a concorrência entre os seus distintos setores) e o
Estado. E a relatividade desta independência manifesta o fato de que o Estado
é, por determinação ontológica, um instrumento das classes dominantes para
aplicar cotidianamente a violência imprescindível à exploração do ser humano
pelo ser humano. Ainda que o Estado seja imprescindível à reprodução da
sociedade de classes, ainda que o Estado burguês seja imprescindível à
reprodução do capital, para as classes dominantes ele sempre se revelou uma
ferramenta imperfeita e de complicada aplicação no dia a dia. Além da história
concreta das sociedades burguesas, com os infindáveis conflitos do Estado com
parcelas ou mesmo com as classes dominantes como um todo, são testemunhas deste
fato as inúmeras teorias e investigações acerca do Estado, do Direito, da
política etc. que tentam explicar esse “enigma” de um Estado que nunca atinge a
perfeição ou, as mais utópicas, que se propõem a criar este Estado perfeito.
O enorme conjunto de políticos e burocratas de todas
as ordens (funcionários do judiciário, das forças armadas, da polícia etc.) é a
personificação dessa independência relativa. Para esse gigantesco ajuntamento
de indivíduos, “o negócio” é ser parte do Estado.
Se é correto que são as necessidades do capital como um
todo que, ao longo do tempo, terminam se impondo na atuação do Estado,
não menos
verdadeiro que esses mesmos interesses podem ser atendidos por mediações diversas. É no espaço dessas
mediações que se
afirma o poder do estamento político-burocrático. Em uma dada circunstância, pode
ser imprescindível ao capital que o Estado investida pesado na construção civil. Mas
qual será a
empreiteira que ficará com a parte do leão deste investimento é algo
indiferente para o sistema do capital como um todo. Odebrecht ou OAS, um
conjunto de médias empreiteiras em vez de um ou duas gigantescas – ou mesmo um
cartel reunindo todas as grandes empreiteiras – essas alternativas são, em larga
medida, capazes de realizar a movimentação de mercadorias e capital que
eventualmente se necessite. É neste espaço de alternativas que o poder do
estamento político-burocrático se manifesta, é aqui que as propinas e corrupções as mais
variadas possuem um gigantesco poder de levar decisões do
Congresso e dos diversos escalões da burocracia, principalmente quando se trata
de alocação de
recursos, no sentido que interessa a um grupo econômico ou a
outro, a uma fração da burguesia ou a outra.
Nenhum exagero na afirmação de que este mecanismo já atuava desde
os primeiros momentos em que o território brasileiro era administrado pela
Coroa Portuguesa. A modernização econômica trazida pelo Ciclo do Café deu uma nova
qualidade a esta relação, então elevada a uma política econômica nacional
de repartição por toda população dos prejuízos oriundos da economia
cafeicultura: a “socialização das perdas”,
administrada ad hoc em um complexo
sistema de propinas, corrupção, pressões e contrapressões que estão presentes
no dia a dia da República Velha.
Contudo, será sob Getúlio que o
papel do Estado de promotor do desenvolvimento industrial pela primeira vez se
faz presente. Não sem gerar conflitos com as oligarquias e mesmo
com a burguesia de então. Naqueles anos que tivemos a criação da Petrobrás, da
Companhia Siderúrgica Nacional, da Eletrobrás etc. São políticas
explicitamente voltadas a desenvolver o setor “moderno” da economia e, como subproduto ideológico,
colaboraram para o desenvolvimento das ilusões acerca da existência de uma
burguesia nacionalista e da possibilidade de um desenvolvimento que rompesse
com a subordinação ao imperialismo. As teorias cepalinas, típicas daquele
momento da nossa história, são expressões desta ilusão.
Não deixa de ser interessante notar como, a partir
dos anos de 1930, iniciou-se a presença cada vez mais intensa da “tecnocracia” e dos “tecnocratas” nas decisões econômicas,
principalmente ao redor das políticas desenvolvimentistas. No Estado Novo, os
remanescentes do tenentismo jogaram este papel; sob a Ditadura Militar,
desenvolveu-se uma autêntica tecnocracia que, de Shigeaki Ueki e Delfin
Netto a Mário Henrique Simonsen, atuaram com consciência no espaço de
alternativas deixado pelas necessidades do capital. A corrupção e as
propina passaram a ter um caráter mais organizado, mais sistematizado, na
medida em que a presença do Estado na economia se expandia e se
generalizava. Foi famosa a taxa de 10% cobrada por Delfin Netto quando
embaixador do Brasil em Paris, nos anos Geisel.
Diferente do que ocorre na concorrência
mercantil, no Estado as relações pessoais, o conhecimento e os favores mútuos, as “articulações” dos indivíduos e grupos
de interesse têm um peso muito grande no destino dos indivíduos. O
conhecimento da máquina estatal é uma qualidade imprescindível a quem se
dispõe a seguir
carreira no seu interior, bem como para aqueles setores das classes dominantes
que necessitam de maior apoio e suporte estatais. Na reprodução da máquina
estatal, os laços de sangue possuem um peso maior do que na reprodução do capital
e, não sem alguma
ironia, por este motivo Marx denominou a burocracia burguesa como um “estamento político-burocrático”. Estamento,
para salientar o peso maior dos laços de parentesco e relações pessoais
na sua reprodução. E político-burocrático para realçar ser ele a
totalidade do Estado, tanto sua expressão imediatamente política
(governos, parlamentos, etc.) quanto sua burocracia (forças armadas,
burocracia propriamente dita e Direito).
No caso brasileiro, com o desenvolvimento de um Estado
marcado pesadamente pela nossa “extração colonial”, o aspecto
estamental é ainda mais evidente. As oligarquias nordestinas, as famílias
tradicionais das classes dominantes se fazem presentes nas Forças Armadas,
no Direito e nas instituições políticas por
anos a fio, por vezes mesmo por décadas. Mesmo nos dias de hoje, o caráter “familiar” e “oligárquico” de instituições estatais e
grupos de interesse no seu interior são uma evidência (os
Sarney, os Maia, os Collor, os Campos etc.) nas lutas políticas.
Pensemos, por exemplo, na
importância do Incra na administração dos conflitos agrários; do quanto, no
auge do MST, tornou-se ferrenha a disputa pela indicação de seus dirigentes
nacionais, estaduais e municipais. Ou, numa escala mais geral, consideremos o
poder que advém do controle do Banco Central, do BNDES, da Caixa Econômica, do
Banco do Brasil, da Petrobrás, da Cia. Siderúrgica Nacional (enquanto era
estatal), Eletrobrás e das mais de seis centenas de empresas estatais.
Ao lado destes cargos, digamos,
mais “técnicos”, temos os cargos diretamente políticos. Bolsonaro terá que
diretamente nomear funcionários para algo ao redor de 25.000 cargos. Só o
Planalto possui 3.500 funcionários, o ocupante da Casa Civil controla 190
cargos e assim por diante. Cada cargo serve de moeda de troca tanto com os
políticos de Brasília quanto com os poderes estaduais e municipais. Os
políticos, por sua vez, nomeiam não poucos assessores diretos e exercem um
poder efetivo de indicação de apadrinhados na estrutura da burocracia nacional,
estadual e municipal – o que lhes confere a potência necessária para negociar
com o capital. Ao lado deste poder, os políticos ainda fazem as leis e aprovam
o Orçamento da União, ou seja, em medida muito importante determinam como, onde
e quando os investimentos estatais são realizados, onde, quando e como o Estado
intervém para regular a concorrência entre diferentes setores do capital. O
Judiciário, onde a corrupção é mais difícil pelo próprio dever do ofício,
desenvolveu seus mecanismos próprios para o enriquecimento de seus membros:
salários elevados com “penduricalhos” por vezes mais do que criativos e o
recebimento de “favores” e “gentilezas” do capital privado – um jurista de
renome recebe fortunas por um parecer ou assessoria, participa de palestras
escandalosamente pagas etc.
Como integrante do estamento
político-burocrático temos, ainda, as Forças Armadas. Enquanto partícipe do
estamento político-burocrático, tem sido até o momento o primo pobre. Não tem
muito a oferecer ao grande capital no período em que a luta de classes passa
por esta calmaria em vivemos e, além disso, nenhuma ameaça externa requer o seu
desenvolvimento. Com a chegada de Bolsonaro ao Planalto, esta situação não deve
se inverter, contudo os militares devem ampliar sua participação no montante de
riqueza abocanhado pelo estamento político-burocrático no seu conjunto. Os mais
de quarenta bilhões direcionados à reforma das carreiras das Forças Armadas
(reforma na qual os escalões superiores receberão até 73% de aumento enquanto
que os inferiores ficarão com 12% - O
Estado de São Paulo, 9 de outubro de 2019) são testemunhas deste fato.
Há que se levar ainda em
consideração que este poder dos burocratas e políticos possui sólida e longa
tradição na história do país. Entre outras coisas, não conhecemos nenhum
fenômeno de “quebra” do Estado como ocorreu nas revoluções burguesas, com a
destruição do Estado absolutista e sua substituição pelo Estado burguês. Sem os
investimentos estatais a Industrialização pela Substituição das Importações
entre os anos de 1930 e pelo menos 1955 teria sido ainda mais limitada; sem a
presença do Estado, a “modernização” econômica pela entrada das multinacionais
nos anos de 1960-70 não teria tido o alcance que conhecemos. Hoje, esta
presença é ainda mais massiva: não apenas a renúncia fiscal e os subsídios
injetam na economia coisa da ordem de 350 bilhões por ano, como ainda 46% dos
investimentos na economia no último ano do governo Dilma vieram do Estado.
O número absoluto de pessoas
alocadas no estamento político-burocratico que levantamos está desatualizado em
alguns anos, mas já é suficiente se ter uma ideia: 2 milhões de funcionários
federais, 3,2 milhões de funcionários estaduais e 6,5 milhões de funcionários
municipais: um total de 11,7 milhões de trabalhadores – cerca de 12% da força
de trabalho do país. Somados aos seus familiares e dependentes econômicos, no
Brasil a cifra deve se aproximar dos 50 milhões de indivíduos que direta ou
indiretamente vivem dos salários pagos pelo Estado. Nestes números não estão
incluídos os empregados em empresas como a Caixa Econômica, o Banco do Brasil,
a Petrobrás, a Eletrobrás, os Correios etc. Ainda que a quantidade absoluta
impressione, é menos da metade da porcentagem da força de trabalho empregada
pelo Estado nos países nórdicos e nos EUA e França. Ou seja, o Estado
brasileiro emprega um percentual menor da força de trabalho do que nos países
capitalistas mais avançados.
O poder de pressão social desse
contingente populacional é bastante peculiar. Não possui aquela qualidade e
aquele impacto que caracteriza o poder do grande capital industrial ou
bancário; em sua potência e agilidade não se compara ao poder de uma Fiesp ou
de uma Febrabam. Ainda assim, é uma força que se esparrama pela quase
totalidade da sociedade, que penetra em todos os seus setores e “rincões” e,
por isso, possui a agilidade e a inércia de um paquiderme: é uma força social
lenta em suas reações mas possui uma extraordinária resiliência para se opor às
transformações e às mudanças que atingem seus interesses. Por séculos criou e
desenvolveu formas próprias para a ampliação da parcela da riqueza nacional da
qual se apropria. É precisamente desta resiliência que os intelectuais
orgânicos do grande capital reclamam ao se referirem ao “peso da burocracia” e
ao “custo do Estado” no Brasil.
Crise estrutural e peso do Estado
Ao lado de tudo isso, deve-se levar
em consideração que a crise estrutural do sistema do capital como um todo, ao
deslocar capitais do setor produtivo (indústria e agricultura,
fundamentalmente) para o circuito financeiro (pois, com a crise, não é mais
possível reinvestir na produção o capital nela produzido), tornou o Estado uma
peça ainda mais importante da reprodução do capital no seu todo. Pois os bancos
apenas aceitam tais investimentos na certeza de que, na outra ponta, os Estados
nacionais deles emprestarão pagando juros “compensadores”. É por isto que as
políticas públicas de aquecimento da economia (os vários “PAC”s do período
petista são típicos) e os subsídios de todos os tipos não param de ampliar a
dívida estatal, cumprindo assim um duplo papel. Por um lado, “financiam” com
recursos públicos a economia em crise, por outro lado tais políticas forçam os
Estados a tomarem crescentes empréstimos dos bancos para financiar o
“financiamento” que promovem da economia. Nesse circuito, o Estado serve ao
capital duas vezes: 1) ao “investir” na economia e, com isso, 2) ao gerar uma
crescente dívida pública que legitima os juros crescentes que paga aos bancos.
Não é nenhuma surpresa, portanto, que o lucro dos bancos cresça não apesar, mas
por causa da crise.
Se o Estado brasileiro, entre subsídios e renúncias
fiscais, entrega às classes dominantes cerca de 350 bilhões por ano, o
estamento político-burocrático -- apenas pela corrupção (ou seja, deixando de
lado os salários e “penduricalhos”) -- abocanha cerca de 290 bilhões por ano,
cerca de 660 milhões de reais por dia. As classes dominantes poderiam
aumentar substancialmente o montante que o Estado lhes destina com subsídios e
“estímulos à produção” se conseguissem reduzir também substancialmente a
corrupção – redução esta que pode ser complementada por uma reforma do Estado
que diminua o gasto com o funcionalismo público. Este o sonho de consumo do
conjunto do capital.
A redemocratização alterou apenas em parte os
personagens desta história. Muitos, como os Barbalhos, os Sarney, os
Calheiros, os Collors, os Neves etc. se mantiveram com poucos deslocamentos na
estrutura do poder. Surgiram novas forças e novos personagens, novos
partidos foram sendo estruturados e a disputa passou a ter uma dimensão eleitoral
cada vez mais importante. O estamento político-burocrático se
modernizou e se adaptou aos novos tempos neoliberais (os mais velhos ainda se
lembrarão das medidas
de “modernização” do Estado de
Bresser Pereira) e ao aumento do seu poder econômico. Pensemos no peso dos diversos
planos de estabilização econômica sob a hiperinflação, de cujo
detalhamento dependia quais os setores das classes dominantes seriam
favorecidos ou prejudicados, etc. As informações privilegiadas (Palocci
acabou de denunciar que a comunicação ao banco BCG da futura política de juros
no país
possibilitou uma lucratividade de mais de 400% aos seus correntistas, etc.), a
influência política no
Congresso ou pela alocação de representantes em postos chaves da
burocracia etc. jogavam papel importante na concorrência entre os
grupos econômicos e grandes empresas. As privatizações nos governos FHC e
Lula-Dilma transferiram ao capital privado gigantescas somas de riqueza e, uma
vez mais, as decisões do estamento político-burocrático jogaram
esta riqueza no colo deste ou daquele grupo econômico ou setor de classe.
Vivemos hoje uma nova rodada de modernização,
racionalização e estruturação do estamento político-burocrático. No
apogeu do petismo, com a entrada maciça de capitais estrangeiros, desde o
Parlamento até as grandes empresas estatais, desde os diversos setores da burguesia e
das oligarquias até os sindicatos, um gigantesco sistema de
distribuição de propinas e corrupção foi estruturado em escala nacional. Se uma
medida provisória podia fazer com que a Brasken tivesse um lucro de muitos milhões, nada mais
apropriado que os deputados e o governo que recebessem uma parcela dos ganhos.
Se uma refinaria é comprada nos EUA, nada mais natural que os
envolvidos no negócio recebessem sua “corretagem”. Se o
pagamento a um empreiteiro que construiu casas no programa Minha Casa, Minha
Vida vai ser liberado em uma agência da Caixa Econômica em Catolé do Rocha, na
Paraíba, nada mais
adequado que o gerente e os funcionários da agência recebam “o seu”. Todo o “sistema” funcionava
azeitado por uma ampla circulação de propinas e corrupções de todas
as ordens e modalidades. Até se chegar ao ponto de que a corrupção não era mais
uma economicamente desprezível, ainda mais com o agravamento da crise
estrutural a partir de 2008. Sendo mais exato, a parcela da mais-valia
apropriada pelo estamento político-burocrático passou a prejudicar a reprodução do capital.
Esta parcela tinha que ser substancialmente reduzida. Tendo início com a Lava
Jato, até os dias em
que escrevemos este texto, a “racionalização” e a “queda do
custo” do estamento
político-burocrático está em
andamento.
Temos agora delineados os quatro elementos decisivos
que contribuíram para a chegada de Bolsonaro ao poder: o conflito de interesses entre
a burguesia interna, a burguesia internacionalizada e o capital internacional,
a paralisia da classe operária em boa medida favorecida pela cooptação de suas
organizações e lideranças pelo
Estado, o papel do estamento político-burocrático e o
agravamento econômico trazido pela crise de 2008.
O nódulo decisivo da crise política
que se iniciou a partir de 2008 pode ser assim resumido: o conjunto do capital
no país, para financiar seus custos com o agravamento da crise, precisa reduzir
o montante de mais-valia apropriada pelo estamento político-burocrático. Este é
montante e o tamanho desta disputa: cerca de 200 a 290 bilhões de reais por
ano. Internacionalmente, a mesma necessidade de reduzir a parcela de riqueza
apropriada pelo estamento político-burocrático se manifesta por toda parte: os Panama papers, a revelação dos
escândalos da FIFA, a prisão de Sarkosi etc. não nos deixam mentir.
O estamento político-burocrático, por outro lado, precisa
manter essa apropriação para reproduzir o seu poder. O conflito estava aberto.
Foi ele o momento predominante na derrubada da Dilma e da desmontagem do poder
o PT, foi o principal móvel da Lava-Jato, dos conflitos que ocorrem no
Congresso Nacional, etc., como já argumentamos em diversas ocasiões. O que nos
interessa, agora, é como este conflito está sendo redimensionado com o acordo
político que vem sendo costurado nestes primeiros meses do governo Bolsonaro.
(aqui)
De Lula a Bolsonaro
Desde a segunda metade dos anos de 1980, mas mais agressivamente depois
da derrota de 1989 para Collor, o grupo dominante no PT, sempre liderado por
Lula, adotou uma dupla estratégia: eliminar sucessivamente, em diferentes
ondas, sua ala mais à esquerda e, concomitantemente, abrir negociações com a
burguesia . A cada congresso do PT era dado um passo à direita, a
ala esquerda era neutralizada ou expurgada. Paralelamente, “ampliava-se” o diálogo com os
donos do capital.
Foi assim que o PT chegou à “Carta aos Brasileiros” de 2001 e ao
primeiro governo Lula. Sua marca de classe foi imediata: reforma da Previdência dos
funcionários públicos (coisa
de 60 bilhões de reais para os banqueiros, nas cifras de então), a cooptação ao Estado
do que restava do movimento popular e do movimento sindical, a continuação das
privatizações; o aprofundamento do neoliberalismo, enfim. Os trabalhadores, operários e o
movimento popular foram reduzidos a currais eleitorais do petismo e legitimavam as políticas econômicas
implementadas segundo o gosto e as necessidades do capital (agrobusiness incluso). Lembremos o apoio
da CUT e do MST à reforma da previdência do funcionalismo público nos
primeiros meses do petismo. De 2002 até passado 2008, a aliança
preferencial com a burguesia interna não inviabilizava o atendimento do
fundamental das demandas do capital internacionalizado e do capital mundial;
pelo contrário, as condições econômicas de então
possibilizavam este atendimento. O PT oferecia ainda, algo não desprezável, um céu de brigadeiro
à continuidade
do neoliberalismo que o PSDB já não mais era capaz de ofertar.
O amordaçamento e domesticação da esquerda, do movimento
dos operários e
trabalhadores foi a condição necessária para implementar as políticas econômicas
petistas: injeção, via Estado, de recursos na economia, quer sob a forma de
financiamentos a projetos de infraestrutura (Minha casa, minha vida, PACs
etc.), quer como financiamentos de grandes eventos (Olimpíadas etc.),
ou ainda como financiamento ao complexo industrial-militar (submarino nuclear,
Embraer etc.), ou sob a forma de subsídios à indústria e a agricultura. O resultado é que, ao
final do governo Dilma, 46% dos investimentos na economia vinham do Estado. Um
keynesianismo anacrônico e sui
generis: a estratégia era criar “multinacionais brasileiras” com
financiamento estatal! BSF e Odebrecht são testemunhos típicos desta
insensatez!
Faz parte destas políticas econômicas petistas, com grave impacto no
emprego e na distribuição de renda, a adoção de tecnologias e estratégias de
gerenciamento da força de trabalho que ampliam a mais-valia e reduzem
os postos de trabalho. O controle dos trabalhadores e operários pelos
sindicatos é decisivo para que tal implementação se faça ao menor
custo possível – e esse papel o PT e o sindicalismo cumpriu com galhardia!
Todo esse “serviço” ao capital teve, contudo, o seu preço. O aumento
do peso econômico do Estado conduziu ao aumento do poder econômico e,
portanto, político, dos burocratas. Quer no Legislativo e Executivo (de Brasília ao município mais
modesto), quer nas empresas estatais (Correios, Petrobrás, Eletrobrás, BNDES,
Banco do Brasil, Caixa Econômica etc.), quer na alta burocracia de carreira
(desde o Itamaraty, as universidades, até os altos escalões da esfera
federal e estadual), os burocratas passaram a controlar investimentos estatais
sempre crescentes e a interferir cada vez mais decisivamente em qual empresa ou
grupo econômico receberia essas benesses estatais.
A origem “do modo petista de corrupção” (Roberto
Jefferson) tem sua fonte mais imediata nesta “suruba” (palavras do Delúbio Soares)
entre os recursos estatais e os interesses privados dos empresários e dos
burocratas promovida como parte da estratégia de financiar com recursos públicos a
formação de “multinacionais
brasileiras”. Ao final do governo petista, até mesmo medidas provisórias que
garantiam ganhos aos empresários eram cotidianamente vendidas em troca de
propinas e “recursos não contabilizados” (Delúbio, novamente). Consolidou-se,
assim, com uma densidade inédita em nossa história, um agrupamento burocrático e político com
interesses bem precisos: recolher propinas pela alocação de recursos
públicos e, com
esses recursos, promover o aumento de sua influência e do seu poder no Estado e na
sociedade. O estamento político-burocrático, uma característica de todo
Estado burguês, adquiriu uma inédita densidade e coesão sob a
coordenação dos
governos petistas, como já mencionamos.
Com o crescimento da China e a manutenção de elevados preços das commodities, esta estratégia petista
contava com recursos suficientes; contudo, com a descoberta do pré-sal, os delírios petistas
passaram a outro patamar: Lula ficaria no poder mais tempo do que Getúlio Vargas!!
Bastou a crise de 2008 para pôr ordem nas coisas.
Sem os recursos externos, os petistas tiveram que alterar sua estratégia política e econômica. Em vez
de uma inversão de 180 graus em sua estratégia política, cometeram o grande equívoco de
avaliar a crise como superficial e passageira. Decidiram manter a aliança preferencial
com a burguesia interna ainda que ao preço de confrontar o restante da
burguesia e, ainda, o capital internacional. Verdade que promoveram “pequenos
ajustes”, entre os
quais estreitar a aliança com o estamento político-burocrático se
aproximando de Cunha (para manter o Congresso sob controle) e entregando a
vice-presidência ao Temer. O PMDB, finalmente, subiu a rampa do Planalto!
Deu no que deu: o capital internacionalizado e internacional estimulou e
deu forças à Lava-Jato,
veio o impeachment. A “bagaceira da
bandalheira” (palavras de Palocci) envolvendo os políticos e os empresários se
tornou pública e várias figuras
chaves do “mecanismo” foram presas, desde empresários e políticos, até burocratas,
doleiros e “operadores”. Moro se tornou personagem mundial, capa do N. Y. Times. Naquele momento, o
estamento político-burocrático e a burguesia interna estavam perdendo feio
para o grande capital na quebra de braço pela partilha da riqueza produzida
no país.
Como nenhum candidato sequer aparentava qualquer oposição com os
esquemas de poder que dominaram este país, nas asas do desespero generalizado
com o desemprego e a crise econômica, elegeu-se Bolsonaro! Uma difusa sublevação contra o status quo jogou os milhões de votos
no colo da direita. A revolta, que deveria ser o solo preferencial da esquerda,
converteu-se em base eleitoral dos bolsonaristas! Há, ainda, mais
uma ironia nesta história: até bem próximo do primeiro turno das eleições de 2018,
avaliando que o mais fácil a ser batido no segundo turno seria
Bolsonaro, o PT centrou seu fogo em Alckmin! Carlos Bolsonaro, o estrategista
do PSL, bateu todos os estrategistas do PT!
Este o primeiro aspecto importante para entendermos a crise em que
estamos metidos: o fracasso econômico do PT e de sua estratégia de elevar
o país ao Primeiro
Mundo pela promoção das multinacionais brasileiras com
financiamento estatal.
O segundo aspecto importante, agora mais diretamente ideológico, é a profunda
desilusão da população em geral
com a “esquerda”.
Como todo fenômeno ideológico de alguma importância, este
também tem seu
solo fundante na situação social real, neste caso, na desesperadora situação em que se
encontra a sociedade: da Igreja católica aos times de futebol, das
escolas de samba ao sistema financeiro, não há setor da sociedade que não se encontre
em uma profunda crise (exceto, talvez, as milícias, as drogas e o comércio ilegal
de armas).
Lembram-se das promessas petistas? Distribuição de renda?
Todos os dados confirmam que sob o petismo tivemos uma ainda maior concentração da renda: 6
indivíduos possuem
a riqueza equivalente a de 150 milhões de pessoas! Defesa dos direitos
dos trabalhadores? Reforma da previdência, integração dos
sindicatos ao Estado em um grau inédito, cooptação do
movimento popular e de suas principais lideranças (de Stedile a Boulos) e apoio
ativo aos empresários na adoção de novas tecnologias que
ampliam a exploração e o desemprego: que defesa dos trabalhadores
pode ser essa? Combate ao machismo e ao conservadorismo? Antes dos anos petistas,
ainda se podiam fazer abortos, hoje está praticamente impossível! Combate
ao conservadorismo?
Quando os fundamentalistas mais ampliaram sua influência sobre a
educação pública do que
sob os petistas? Qual governo não moveu sequer uma palha para impedir o
crescimento da “Escola sem partido” e a obrigatoriedade de incluir o
criacionismo no currículo escolar, como é hoje lei no Rio de Janeiro?Quem fez
frente com Edir Macedo, quem paquerou com os evangélicos, quem
nada vez para combater o crescimento da direita fundamentalista no congresso,
antes se aliou seguidamente a seus próceres? Sob qual governo as concessões do Estado
para TVs evangélicas se expandiram, sob qual governo a Record se tornou o que é hoje? Quem
levou o MDB ao poder? Sob quais governos as igrejas evangélicas mais
reacionárias
receberam subvenções e privilégios como o não pagamento
de impostos? Não foram os bolsonaristas de agora! Quando a direita mais cresceu?
Quando, antes, os evangélicos tiveram a banca no Congresso que
conquistaram sob o PT?
Reforma agrária? Com verbas e mais verbas sendo generosamente
destinadas aos latifundiários? Defesa do SUS? Quando foi que os planos de
saúde mais
cresceram? Defesa da educação pública? Quando os grandes grupos
capitalistas internacionais entraram para valer no nosso sistema educacional?
Quando as universidades privadas receberam mais recursos públicos que as
públicas?
Quando a prática petista foi além da negação do seu discurso?
Independência do país do grande capital internacional?
Seria para rir, se não fosse uma tragédia para milhões de
brasileiros! Não foi Lula quem trouxe Meirelles, então funcionário do Banco
de Boston, para dirigir o Banco Central? Quem era, mesmo, “o cara”, do Obama?
Quando um presidente brasileiro foi tão bem recebido em Davos? Quando os
bancos foram tão lucrativos? Quando as reservas brasileiras foram colocadas à disposição do FMI?
Quando se aprofundou a “integração” da economia
nacional ao sistema mundial do capital? Quando mandamos tropas ao exterior como
auxiliares à imposição da Pax Americana sobre a
humanidade?
A lista poderia continuar indefinidamente, mas não é possível encerrar
sem mencionar ao menos isto: “ética” na política? Só se por ética
entendemos a promoção dos interesses do estamento político-burocrático e de uma
parcela da burguesia interna também através do “mecanismo’ de saqueio
dos recursos públicos que, repetimos, alguns calculam como sendo da ordem de 600 milhões de reais
por dia, 290 bilhões por ano?
Há ainda um
outro aspecto importante a ser considerado: a complacência dos
governos petistas para com o aparato repressivo do qual Bolsonaro é um
representante nato.
Se há algo que diferencia Bolsonaro dos representantes do capital que
ocuparam o Planalto até agora é sua truculência, seu
radical conservadorismo na moral e nos costumes e sua aberta apologia à violência, à ditadura
militar, às torturas e aos torturadores. Esta constatação deve ser
seguida de uma questão: como foi possível que sobrevivesse como força tão expressiva esta
vertente política?
Esta vertente sobreviveu também graças ao PT!
Lembremos o passado não tão distante.
A posse de Lula em 2002 causou uma gigantesca onda de esperança. Multidões na sua
posse em Brasília! As coisas, agora, dariam certo para o país! Nesta onda
de expectativas e esperanças, cresceu também o impulso a que, finalmente, os
crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura seriam apurados e punidos,
como então já ocorria em vários países da América Latina.
Depois de dois governos Lula, o governo Dilma criou, então, a Comissão Nacional da
Verdade.
Como diz Marx na “Glosas Críticas”, sempre que o Estado não quer
resolver uma questão, cria uma comissão! Ao invés da punição dos
torturadores, a Comissão da Verdade distribuiu indenizações em dinheiro
em troca de se abrir mão do direito de exigir a apuração e punição dos
criminosos contra a humanidade da época da ditadura! Assim foi feito,
assim foi realizado: assim foi preservado o aparato repressivo da ditadura!
Para garantir ainda mais os repressores, o ex-guerrilheiro do Araguaia,
José Genoino, que
logo depois seria preso no Mensalão e que, nas eleições de 2018,
assessorou Haddad, traiu vergonhosamente a memória dos seus ex-camaradas da
guerrilha ao manobrar para que a verdade não viesse à luz. Hoje,
sabemos, possivelmente também para esconder sua vergonhosa traição.
Lembremos que nada disso custou ao PT o rompimento de seus atuais satélites!
O PSOL, o PC do B e mesmo o PCB apoiaram a Comissão da Verdade
e a política de
indenizações em troca
do silêncio dos
torturados e perseguidos. O PC do B não abandonou o apoio ao governo
petista, antes abandonou em covas não identificadas os cadáveres de seus
ex-camaradas! Atuais dirigentes do PCB coletaram a indenização e nem se
envergonham deste feito! (Muito diferente de Anita Prestes que, com honra, teve
que aceitar a indenização para poder se aposentar, mas doou a mesma para
uma entidade filantrópica e denunciou publicamente a rendição promovida
pelos petistas!)
O que pode significar “democratização do Estado” e “defesa dos
direitos humanos” nos lábios petistas? Com Genoíno sendo
destacado para impedir que os crimes da ditadura viessem a público e os
responsáveis fossem
punidos na forma da lei? Com a continuidade da vergonhosa política da “Comissão da Verdade” de comprar o
silêncio das vítimas da
ditadura com polpudas indenizações? Com o ativo apoio para a manutenção do aparelho
repressivo da ditadura em nome da “governabilidade”? Dilma
sequer processou Ulstra!
Petistas, psolistas, pecebistas, pecedobistas… todos foram
coniventes, quando não ativos promotores, da preservação dos setores
mais radicais das hostes de Bolsonaro – lembremos: em nome da
governabilidade.
Estas forças políticas aprenderam com o passado? Que
nada! Qual a atitude delas para com a apuração da morte de Marielle?
Protestam onde o protesto não tem nenhum valor, no parlamento e na burocracia
estatal; se calam onde o protesto poderia contar: junto aos trabalhadores e
operários!
Protestos eleitoreiros em um momento histórico em que as eleições nada podem
alterar na essência das coisas – e até Carlos Bolsonaro sabe disto! Há poucos dias
afirmou que não se vai longe com a democracia na direção que ele almeja.
Ainda mais: foram dados sob os governos petistas importantes passos na
modernização da Polícia Federal, dos sistemas de vigilância dos
cidadãos, dos
sistemas de investigação e processamento de dados e, ainda, “avançou-se” no “aperfeiçoamento” da legislação repressiva
que, no governo Dilma, passou a possibilitar a prisão incomunicável praticamente
sem nenhum controle jurídico.
Não foram
nossas tropas enviadas para o Haiti para, entre outras coisas, treinarem como
intervir em favelas como as do Rio de Janeiro? Não foram os governos petistas foram
complacentes com a manutenção da tortura e foram ativos no aperfeiçoamento do
aparelho repressivo? Não foi sob eles que as milícias mais se
desenvolveram e ganharam o poder que têm hoje? Quando as empresas de segurança privadas se
desenvolveram até ter hoje um contingente duas vezes maior que o
da polícia? Quando
foram aprovadas as leis mais duras contra a dissenção política, desde a
redemocratização? Quando os convênios com a Interpol, a CIA e o FBI não apenas
foram renovado, mas “desenvolvidos”? Quem reprimiu o movimento e a
liderança de 2013?
Quem colocou Sininho em uma vida clandestina? Se tudo isso não foi obra do
petismo, não vivemos no mesmo planeta.
Quem reprimiu a greve do funcionalismo público contra a Reforma da Previdência no 1º governo
Lula? Lembram-se da repressão ao movimento de 2013? Lembram-se da repressão a todos os
pequenos movimentos de massa que tivemos sob o petismo? Lembram-se dos
assassinatos das lideranças camponesas? Lembram-se da misteriosa morte de
um dos “terroristas” presos nas vésperas das Olimpíadas? Tudo
isso ocorreu sob o governo dos petistas e seus satélites.
Bolsonaro e sua turma têm hoje apenas a força que lhes têm dada a
infindável sequência de
acordos, acomodações e rendições dos petistas e seus satélites ao que
de mais reacionário e truculento sobreviveu da ditadura.
E as coisas não mudaram nem um átomo nas eleições de 2018:
para enfrentar Bolsonaro no 2º turno, ao invés de investir na denúncia dos
crimes que cometeram contra a humanidade, de bater duro no seu conservadorismo
e reacionarismo, Haddad e os petistas tentar se passar por bolsonaristas!!
Beijam a mão de bispos, falam em entregar armas “às pessoas certas”, abandonam a
defesa do direito ao aborto e ao planejamento familiar, calam-se ante as
propostas de militarização das escolas… e se vestem de verde-amarelo!
O apoio ao PT de seus satélites no 2º turno de
2018 nada mais foi do que mais uma rendição à direita. E
isto não é uma questão meramente
de opção política: aqueles
se propõem hoje a
servir ao capital a partir dos “altos postos de comando do Estado” têm que se
curvar à necessidade
absoluta da reprodução do capital. Por isso é que há tantas
linhas de continuidade entre os governos petistas e Bolsonaro. Por isso é que os
petistas e seus satélites não podem ir além de
defensores da mesma estratégia econômica dos bolsonaristas: não são
antagonistas reais e de fato ao bolsonarismo. E, nestes dias em que escrevo, em
setembro de 2019, têm papel ativo na desmontagem da Lava-Jato que
interessa também à “família imperial” – sob a
desculpa da defesa do Estado do Direito!
Nenhuma das promessas petistas terminou valendo mais do que o discurso
de qualquer político: justificar a sua luta pelo poder. O
discurso pode variar, o poder pelo qual se luta é o mesmo!
O segundo aspecto importante na emergência do bolsonarismo é a profunda
desilusão, sociedade
afora, com isto que se apresentou como “esquerda”. A volta do
cipó de aroeira
da traição das esperanças que o país depositou
nos petistas foi a “sublevação” eleitoral em
que hoje surfa a direita inspirada em Olavo de Carvalho.
O terceiro aspecto decisivo para a chegada dos Bolsonaros ao poder é o cretinismo
parlamentar (a expressão é de Marx, é bom lembrar)
do que restou de nossa esquerda com alguma expressão eleitoral.
Não é preciso se
estender muito: de uma esquerda que, no passado, com equívocos maiores
ou menores, era revolucionária, se converteu em uma esquerda eleitoreira que
imagina que ganhar eleições é tomar o poder! No momento em que uma
massa enorme de pessoas votam nulo porque não mais creem nos políticos e no
Estado, esta esquerda lança uma frente eleitoral ao redor de Boulos que
quase não sai do zero
% dos votos!
Nunca o descrédito da população foi maior para com os políticos e
burocratas, mas também, em grau menor, para com o próprio Estado.
Nunca a esquerda contou com uma situação tão favorável para a
propaganda revolucionária da necessidade de se superar o Estado por uma
forma superior, comunista, de organização da sociedade.
Lamentavelmente, mas não por acaso, a oportunidade foi perdida. O descrédito nos políticos e no
Estado está entre as razões ideológicas mais importantes para a “sublevação eleitoral” de 2018.
Essa é uma esquerda que já morreu enquanto esquerda. Suas ilusões com a
ordem e as instituições burguesas a convertem em um entrave à retomada da
capacidade de luta dos trabalhadores e operários.
Estas são as causas mais importantes da vitória de Bolsonaro. Há outras, há mesmo causas
locais e regionais; há causas que lançam raízes no conservadorismo de uma
sociedade que foi escravista até um século atrás e que hoje é patriarcal e
católica, mas as
causas mais importantes são a desilusão generalizada com a dita esquerda
depois de anos de petismo, a desagregação do tecido social pela crise
social e econômica, a domesticação do movimento dos trabalhadores e operários pela
burocracia oriunda da aristocracia operária e a incapacidade da nossa
esquerda de ser, de fato, uma esquerda, isto é, uma potência
revolucionária.
O que nos ameaça é gravíssimo: Bolsonaro representa uma
intensa e difusa migração de todo descontentamento para uma alternativa à direita. De
grandes e médios empresários, a desempregados, trabalhadores, operários e
aristocratas operários, de setores importantes da “classe média” e do
estamento político-burocrático, um vasto movimento social ganhou corpo nas últimas
semanas antes das eleições de 2018 A ideologia cotidiana passa por uma
guinada à direita, uma
guinada que nem Bolsonaro nem seu partido teriam forças para
promover. Eles são muito mais o resultado do processo histórico recente
no país do que
sujeitos ativos da sua vitória em 2018.
É provável que isto seja também a preparação de uma enorme crise. Não entraremos
agora neste aspecto: mas esta situação contém vários dos
elementos mais importantes para a eclosão de uma enorme crise. A desilusão com o
petismo vai se repetir, agora como farsa, com a “solução Bolsonaro.” Mais cedo do
que tarde, a desilusão vai calar fundo: um capitão reformado
com ligações com o
submundo do crime e das milícias, com a entourage
que o cerca, é tudo menos uma adequada personificação do capital para gerir o país. Em que vai
resultar esta situação é algo que o futuro não distante
dirá.
Um governo instável
Os menos de 40% dos votos recebidos por Bolsonaro no
segundo turno das eleições de 2018 não foram, em sua totalidade,
exatamente para ele, bem como os votos que produziram uma inédita renovação nos
legislativos desde a redemocratização não foram, em
sua totalidade, para os valores e propostas pueris, muitas vezes simplesmente
inaplicáveis, do “bolsonarismo” – seja lá o que isso
for. Foram em grande parte votos antipetistas, anti-status-quo e anticorrupção. Ou seja,
os bolsonarianos foram eleitos não pelo que de fato são, mas pelo
que os eleitores não queriam mais em Brasília. Isto
confere a eles um apelo popular muito menor do que imaginam -- ou que teriam no
caso de um conflito político generalizado.
Para chegar ao poder, Bolsonaro foi costurando uma
frente com quatro elementos que são, entre si, em boa medida incompatíveis. O
primeiro deles são os militares, que ocupam hoje administrativa e
politicamente lugar de destaque no governo, a iniciar pelo vice, ex-general
Mourão. Os
militares são parte do estamento político-burocrático, porém uma parte
que, desde o fim da Ditadura Militar, conheceu o ostracismo. Foram colocados
sob o controle de um civil e, na divisão do bolo da mais-valia que passa
pelo Estado, foram sempre o primo pobre. Pela sua própria
estrutura, os militares são muito sensíveis às pressões vindas de sua base social, base
esta que é parte daquilo que compõe o “baixo clero” do estamento
político-burocrático.
Entre os militares, na sua maioria reformados, que
fazem parte do governo e os militares da ativa, com efetivo comando de tropas,
não há uma
identidade nem um alinhamento automático.
Tudo indica que, nestes primeiros meses, os militares
no governo, Mourão acima de tudo, estão
interessados em se apresentar como independentes, essencialmente distintos de
Olavo de Carvalho, do clã Bolsonaro e dos bolsonaristas em geral e com
algumas diferenças importantes com Guedes no que diz respeito à amplitude
das privatizações e à reforma da Previdência dos militares. Mais recentemente, Mourão saiu de seu
“período de silêncio”, depois de
uma fase mais ativa junto à imprensa nos primeiros meses de 2019, para uma
crítica frontal à afirmação de Carlos
Bolsonaro de que através da democracia não atingiriam as mudanças que eles
pretendem ao país.
Este o primeiro dos elementos que compõe o governo:
os militares.
O segundo é o restante do estamento político-burocrático, formado
pelo seu alto e pelo baixo clero.
Por terem suas bases eleitorais nas camadas mais
pobres e nas regiões e municípios menos desenvolvidos do país, os membros
do baixo clero do estamento político-burocrático possuem interesses e perspectivas
que nem sempre acompanham aqueles do alto clero. Este, por sua vez, é formado
pelos “caciques” de Brasília, pelos
chefes das oligarquias estaduais etc. e pelos altos funcionários das
empresas estatais (Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobrás etc.). No
passado recente, estes “caciques” (lembremos de Jucá, Moreira
Franco, Temer, Cunha, Sarney, ACMNeto, Jader Barbalho, Samir Amim etc.) tinham
sob controle os do baixo clero porque contavam com recursos no Orçamento
Nacional e também vindos das propinas e corrupções para
financiar as eleições do baixo clero através de
"agrados" às suas bases eleitorais.
Um dos efeitos importantes da Lava-Jato, combinados
com a crise econômica, foi diminuir esses recursos. Com a
inesperada renovação dos legislativos, essa falta de recursos
colabora para dificultar o controle do baixo pelo alto clero. Lembremos que
Bolsonaro e filhos sempre foram parte do baixo clero. Excluídos dos
esquemas de corrupção e propinas do alto clero, os Bolsonaro sempre
se moveram com mais facilidade nas sombras e porões da pequena corrupção e das milícias. Votaram
contra as reformas da Previdência no passado e, na atual, incentivaram resistências a
algumas das propostas de Guedes.
Em poucas semanas esse quadro foi revertido. Diferente
do início do
governo, quando havia uma distância real entre o baixo e o alto clero, hoje esta
distância parece
superada. Na votação da Reforma da Previdência e,
ainda, nas discussões acerca da Reforma Tributária, esta
separação não parece ter
um papel decisivo. O alto clero parece ter enquadrado o baixo clero. A atuação do DEM, com
Maia à frente,
parece ter tido nesse enquadramento um peso decisivo. Com isso chegamos, em
setembro de 2019, a um Congresso pacificado e sob o controle do Centrão, isto é, articulado ao
redor dos interesses históricos do estamento político-burocrático.
Esta unificação possibilitou o crescimento
do peso político do Congresso às custas de Bolsonaro. Um regime presidencial
como o nosso vive uma situação anômala de ter um Congresso pautando a
agenda política e econômica mais do que a Presidência. De
fato, ao menos por enquanto, o Centrão – e por tabela o Congresso – se cacifaram
como os principais porta-vozes dos interesses do conjunto do capital. Temos,
com isso, um elemento novo no cenário: dado o controle do Congresso
pelos caciques do estamento político-burocrático faz deles o principal
instrumento para a aprovação das medidas que interessam ao conjunto do
capital, a este já não mais interessa – como interessava
no passado recente – desmantelar o “esquema” articulado por Maia, pelo DEM e pelo
Centrão. Por sua
vez, o interesse do grande capital em preservar os caciques do estamento político-burocrático conduz à necessidade
de interromper e desmontar a Lava-Jato. Sobre isto, voltaremos logo abaixo. Se
aproveitando desta sua nova posição de força, o
estamento político-burocrático aprovou, no final do mês de
setembro, uma série de alterações na legislação eleitoral
que, se não retorna à situação anterior à Lava-Jato,
abre as portas para modalidades mais brandas de caixa dois e corrupção eleitoral.
Com isto não apenas o alto, mas também o baixo clero vão recuperando
uma parte do que haviam perdido na repartição com os donos do poder da
riqueza nacional.
O terceiro elemento do governo Bolsonaro são as forças econômicas
representadas por Guedes. Essas forças não são tão amplas quanto possam parecer a
primeira vista. Guedes nem é um intelectual orgânico do capital financeiro nem seu
representante político. É um aventureiro e empreendedor que
ganhou alguns milhões com especulações no mercado e que espera,
com seu programa econômico, amealhar mais outros tantos. O modo como
ele dispôs seus
investimentos às vésperas de se tornar ministro mostra com que medidas econômicas ele
espera se enriquecer ainda mais. A sua proposta de um liberalismo econômico a todo
vapor, que praticamente reduz o Estado ao aparato repressivo e aos mecanismos
mais básicos do
controle da moeda e das finanças – explicitamente inspirado na Escola
de Chicago mas mais provavelmente resultante de seu senso de oportunidade para
bons negócios nesses
anos de bolsonarismo – coincide com alguns dos projetos e algumas das
necessidades mais imediatas do conjunto do capital. Acima de tudo, a transferência para o capital
privado de parte dos bilhões hoje nas mãos do estamento político-burocrático pela
diminuição da presença do Estado
na economia, com o “barateamento” dos custos sociais através da reforma
da Previdência e da desoneração da folha de pagamento, a desoneração do orçamento, a
privatização do que ainda for privatizável, a reforma tributária – estas e
outras medidas, claro está, vão de encontro ao conjunto do capital.
Daqui reside a sua força e sua autoridade no interior do governo.
Contudo, contra ele pesa o fato de não ser, de
fato, um representante do conjunto do capital, nem mesmo do seu setor
financeiro; pesa o fato de seu projeto liberal entrar em choque com as concepções estratégicas dos
militares no governo e da família Bolsonaro, os quais enxergam na privatização total e
completa de Guedes a renúncia à soberania nacional, pesa o fato de
que muitas de suas iniciativas atingem interesses do baixo clero e dos
militares.
O quarto elemento do governo Bolsonaro é aquilo que
Fernando Henrique Cardoso denominou de “família imperial”. Isto é, a influência no
governo dos filhos de Bolsonaro. Esta influência tem sua importância porque
representa, se podemos dizer assim, o aspecto ideológico duro do
bolsonarismo. Em clara e explícita aliança com o astrólogo da Virgínia, Olavo de
Carvalho, a família expressa a revolução da moral e
dos costumes que os bolsonaristas enxergam como a panaceia universal para todos
os nossos males. O clã Bolsonaro está maravilhado com o “milagre” da virada
que deu a ele a vitória nas últimas eleições e tende,
por isso, a superestimar tanto o apoio que possui da população quanto sua
capacidade de mobilizar a sociedade pelas redes sociais.
A primeira investida da "família
imperial" foi contra os militares, ainda no período de transição de governo,
transbordou com as disputas no interior do Itamaraty e do Ministério da Educação. No caso do
Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo terminou sob o controle de uma
comissão formada
também por
militares para evitar que faça declarações ou tome medidas que tenham
impacto estratégico-bélico (ou seja, todas as questões minimamente importantes). Em questões como a
mudança da
embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, as relações com a
Venezuela etc. o ministro pouco apita. No caso do Ministério da Educação, a indicação do novo
ministro (Abrahan Weitraub) mantém o ministério sob os
olavetes mas não supera o conflito no seu interior com as outras alas do governo e do
Congresso. O que é claro é que os partidários do Olavo
de Carvalho e a “família imperial” estão
descontentes, para dizer o mínimo, com a postura dos militares naquela pasta.
Foi neste contexto que Olavo de Carvalho chamou Mourão de “Idiota” e declarou
que havia telefonado ao Ministro da Educação, Velles, para manda-lo “tomar no cú”. Bolsonaro,
ainda assim, jantou em Washington com Olavo de Carvalho sem tomar a defesa de
seu vice ou de seu ministro – mesmo poucas horas depois de o astrólogo da Virgínia ter
declaro que mais seis meses nesse andar o “Governo Bolsonaro estará terminado”.
O estamento político-burocrático e o
capital no seu conjunto em poucas semanas aplicaram a pressão necessária para, ao
menos em parte importante, domesticar a família imperial. Os laranjas do PSL,
depois o caso Queirós e, ainda, as investigações acerca do
enriquecimento de Bolsonaro e acerca das milícias do Rio (caso Marielle, os prédios que
desabaram em território dominado pelas milícias etc.) se
aproximaram perigosamente da família imperial. A pressão fez efeito
e o clã Bolsonaro
passou a negar na prática seu discurso anticorrupção. A família imperial
se opôs à abertura da
CPI sobre o Supremo (a Lava-Toga), o governo devolveu o Conaf ao Ministério da
Economia com um novo nome, o pacote anticorrupção de Moro vai sendo depenado
com o apoio da Presidência e em mais alguns dias o Supremo vai decidir
o alcance de sua decisão de revogar as condenações da
Lava-Jato e a prisão em segunda instância – sem que Bolsonaro faça qualquer
campanha contra tais decisões do Supremo.
Esse, tanto quanto conseguimos enxergar, é o traço decisivo
nestes nove meses de governo Bolsonaro: o capital internacional e o capital
internacionalizado no Brasil tiveram que conceber ao estamento político-burocrático para que
as reformas que lhes interessassem fossem aprovadas em curto prazo. Maia se converteu
no grande paladino das reformas e, em troca, o estamento político-burocrático sustou a
“sangria” (Jucá) da
Lava-Jato, aprovou uma nova lei eleitoral que favorece o caixa 2 e ainda
consolidou uma nova liderança ao redor do DEM e do Maia (definitivamente
substituindo a anterior do PMDB, de Temer-Cunha). Teremos, nos próximos passos,
o avanço nas
privatizações, a reforma tributária e a reforma do funcionalismo público. Com
essa aproximação entre o capital e o estamento político-burocrático, o poder
real da família imperial fica reduzido a pontos secundários e desimportantes, como a pauta
dos costumes, o combate às “ideologias” e as medidas
de perfumaria (suspender os radares nas estradas federais e coisas do gênero). O que,
por um lado, se pode garantir que este governo chegue ao fim sem passar por um impeachment, por outro lado possui a conditio sino qua non de o clã Bolsonaro
colaborar para tanto, não fazendo loucuras além da conta! O
que não está, claro,
garantido de antemão.
Reprisando: o Congresso, de representante dos
interesses do estamento político-burocrático em conflito com o grande
capital, se converteu no grande aliado desde mesmo grande capital que já não pode contar
com a Presidência ocupada por Bolsonaro. A posição que, no passado, era representada
principalmente pelo jornal o Estado de São Paulo, quando do auge da Lava-Jato,
de que seria indispensável um acordo com os “políticos de Brasília”, terminou
sendo a posição predominante depois que Bolsonaro venceu as eleições. Na nova
situação, sem o
apoio ativo do Congresso, nem a Reforma da Previdência, nem as privatizações nem as
outras reformas que interessam ao capital no seu conjunto seriam viáveis. De
adversários
renhidos, converteram-se em aliados e, assim, Maia passou a ser o grande interlocutor,
e o mais confiável, do grande capital na condução do estamento político-burocrático. Moro, o
paladino da Lava-Jato, foi escanteado e Maia surge como estrela em ascensão. O Supremo,
que no passado sustentou a Lava-Jato, agora a enterra.
Se, na fase da decadência petista, o confronto se dava
entre o grande capital internacionalizado e o estamento político-burocrático ao redor
do montante da riqueza que caberia ao último, agora este conflito fica em
segundo plano. O estamento político-burocrático concorda em receber menos, mas,
ainda assim, o suficiente para se reproduzir, e o grande capital segura a
Lava-Jato para preservar Maia e os atuais caciques do estamento político-burocrático. Os juízes do
Supremo --, dos quais as investigações de aproximam perigosamente
e já revelavam
que o irmão de Toffoli teria seu apartamento reformado pela OAS – estão desmontando
a Lava-Jato.
Uma pequena pressão sobre a “família imperial” completou a
articulação para o
acordo. O caso Queiróz e as investigações sobre as milícias cariocas
que se aproximavam dos Bolsonaros bastaram para que o Presidente deixasse de
ser o paladino na luta contra a corrupção e se convertesse em um
aliado no esforço para desmontar a Lava-Jato: a Conaf voltou ao
Ministério da
Economia, Moro é escanteado e Aras é nomeado para a PGR ao invés de
Dellagnol, como queriam os bolsonaristas de raiz. Pela primeira vez a base de
Bolsonaro começa a fazer água e as críticas à sua aliança “com os
corruptos” começam a se multiplicar.
Faltava um último elemento para consolidar o
acordo. E este foi fornecido pelo PT e seus aliados: a Vaza-Jato.
A Vaza-Jato
Foi no contexto em que este acordo estava sendo
costurado que veio à luz, graças ao site Intercept, as reveladoras mensagens entre Moro e os integrantes da
Lava-Jato. A rigor, nada demais nas conversas além do que já sabemos: a
Justiça é, mesmo, uma
farsa. Contra os “baderneiros” de 2013, não foi esta
mesma Justiça que, funcionando exatamente da mesma forma, condenou injustamente várias das
lideranças? Não foi sempre
assim contra o antigo MST, quando ainda era de oposição? Não foi sempre
assim no passado? Por que seria diferente no presente? Por que, agora, este escândalo?
Por duas razões: a primeira, esta é a contribuição do PT e
seus satélites ao
acordo em andamento acima mencionado. Desmoralizar a Lava-Jato agora lhes
interessa como a última alternativa para recuperarem alguma importância
eleitoral através da soltura de Lula (algo hoje mais possível que
alguns meses atrás). A segunda: porque este é mais um
serviço que o PT e
seus satélites prestam
ao grande capital e, assim, tentam novamente se cacifar como, ao menos, um
interlocutor confiável para os donos do poder. Contra a Lava-Jato,
uma enorme frente, de Bolsonaro ao Intercept, passando pelo PSOL, pelo PT, pelo
DEM, pelo Centrão, pelo Supremo e pelos jornais burgueses! Moro
ficou morto em um deserto do qual sequer conhece a saída, se é que há saída para ele.
A questão, ainda em aberto, é o que vai
acontecer com os já presos pela Lava-Jato. Se Lula for solto, o que
acontece com Cunha, Garotinho, Cabral, os doleiros e operadores do “mecanismo”, etc.? Difícil saber,
por enquanto. Por um lado, aos atuais líderes do estamento político-burocrático pode não interessar
que essas figuras todas retornem à vida pública para disputar com eles um lugar
ao sol. Por outro lado, pode ser que não seja possível mantê-los presos
sem continuar as investigações já em andamento pelas engrenagens jurídicas
desencadeadas pela Lava-Jato. Os limites do acordo para extinguir a Lava-Jato
ainda não são públicos, mas
sua existência é difícil de ser negada.
O que assistimos, portanto, nos primeiros nove meses
do governo Bolsonaro foi um realinhamento de forças provocado pelos novos ocupantes do
Planalto.
O alto clero do estamento político-burocrático
converteu uma situação que parecia desesperadora em novembro-dezembro
de 2018 em uma enorme vitória já nos primeiras semanas de 2019. Não deixa de
ser impressionante sua capacidade de virar o jogo. saiu em vantagem já nas
primeiras semanas do novo governo.
Já em janeiro de 2019, um pouco menos de dois meses
(contando com o mês e meio da transição ao novo governo) o DEM se
converteu na peça chave no Congresso com a reeleição de Maia
para a presidência da Câmara e de Alcolumbre para presidir o Senado. Além disso
colocou três ministros no Planalto, entre eles o que seria o articulador político, Onyx
Lorenzoni, na Casa Civil. Ainda, Onyx venceu uma disputa com Guedes. Este
preferia Renan Calheiros, partícipe da antiga entourage do PT, para presidir o Senado tendo em vista a reforma da
Previdência.
O DEM entrou em campo e se cacifou junto ao grande
capital como a principal força que garantiria a aprovação da reforma
da Previdência. Essa aproximação do alto clero com o grande capital, abriu a
possibilidade de um acordo com Supremo Tribunal Federal para sustar a
Lava-Jato, que “já teria ido longo demais” – isto é, se
aproximava da corrupção no Supremo Tribunal Federal.
Há cinco anos, o Supremo deu início à Lava-Jato
ao, em uma decisão inédita, deixar os processos envolvendo
a corrupção de políticos em
Curitiba em vez de, como era tradição, serem transferidos para
Brasília, cidade
na qual o aparato judicial estava sob controle dos caciques do Congresso.
Agora, inverteu-se a história. Primeiro, o Supremo reverteu tirou os
processos de Curitiba: já que a maior parte das acusações envolvem
crimes eleitorais, decidiu que caberá à Justiça Eleitoral julgá-los. A
Lava-Jato conhecia sua primeira grande derrota. Depois, o Supremo decidiu abrir
as portas para a anulação de várias (quais e quantas ainda veremos)
das sentenças condenatórias que fizeram a fama de Moro e promete revisar
a condenação em segunda instância. A Vaza-Jato promovida pelos aliados dos
petistas deu a contribuição que faltava para desmoralizar “os de
Curitiba” e Gilmar
Mendes pede que a PF autentique os diálogos vazados para abrir processos
contra Moro, Dalagnol etc.
Não está claro, contudo, qual seria a abrangência deste
acordo. Tudo indica que, com o beneplácito do grande capital (tanto a Folha
de São Paulo. O
Globo quanto o Estadão estão a clamar em altos brados por um
limite na Lava-Jato e acusam os procuradores de terem “extrapolado
os limites aceitáveis”), uma figura como Temer não teria salvação, mas um
Renan Calheiros talvez possa vir a se salvar. Maia, pai e filho, contudo,
estariam a salvo. Muito mais seguras parecem estar as liberdades de Jucá, de Sarney e
de Collor. Daqui para frente não deveria haver nenhuma nova investigação e nenhuma
nova grande operação contra os políticos e os burocratas das altas
camadas. Moro ficou, no Ministério, em uma sinuca de bico. Não pode
intervir para favorecer a Lava-Jato a não ser oferecendo leis para serem
aprovadas pelo Congresso nas mãos do mesmo DEM que agora teria o apoio do
Supremo e do grande capital para "conter a sangria", numa expressão tornada célebre por Jucá.
Esse realinhamento das forças políticas
nacionais, contudo, está longe de haver se consolidado. Há várias incógnitas no
curto prazo. A primeira delas é o que irá acontecer com a base bolsonarista ao
este novo posicionamento da família imperial se tornar pública.
Figuras de proa já estão fazendo críticas
abertas, desde Janaína Pascoal até os conservadores de estirpe que
apoiaram o clã Bolsonaro. Além disso, as pautas conservadoras avançam muito
lentamente para o gosto da bancada evangélica e críticas já são escutadas
com alguma frequência. A sequência de crises artificias e desnecessárias
promovidas pela administração bolsonarista também não são de menor importância para o
desgaste do governo. Desde a intervenção não
concretizada na Venezuela, passando pelo episódio da transferência da
Embaixada brasileira para Jerusalém, até os diversos choques com os
exportadores, com todo o sistema educacional – os desgastes se fazem por todos os
lados.
Nestes dias em que escrevo, setembro-outubro de 2019,
já se notam
também os
primeiros movimentos de fritura de Guedes e sua equipe econômica, tanto
nos episódios
envolvendo a reforma tributária, quanto também e principalmente na permanência de uma
recuperação econômica que
apenas por tecnicalidades não é denominada de recessão.
Após a Reforma Trabalhista de Temer e a Reforma da
Previdência deste
ano, as promessas de uma retomada econômica não apenas não se
realizam, como ainda a economia se estabiliza em um patamar muito próximo à recessão. E esta é a previsão para os
muitos próximos meses. Vozes já se fazem ouvir reclamando uma retomada dos
investimentos estatais, mesmo ao preço de aumentar a já gigantesca dívida pública, ao
redor de 80% do PIB.
A violência e a miséria persistem e aceleram a perda das
esperanças
despertadas por Bolsonaro. O resultado é uma tendência de queda
de sua popularidade, a qual já se aproxima perigosamente daquele limite a
partir do qual, já nas próximas eleições, estar próximo de Bolsonaro
passa a ser uma desvantagem. Tanto Dória, em São Paulo,
quando Wicksel no Rio, já iniciaram o afastamento do governo federal.
Resta acompanhar como tudo isso irá evoluir nos próximos meses,
configurando já o cenário das eleições do ano que vem.
Que tática seguir?
Se nossa análise não estiver equivocada em sua essência, algumas
conclusões podem ser
indicados para uma tática dos revolucionários nos próximos anos.
Em primeiro lugar e acima de tudo, a visão clara de
que as propostas que tendem a se ampliar de uma “frente democrática
anti-Bolsonaro”, quer sejam propostas vindas do PC do B, do PCB, do PT, do PSOL, do PDT,
ou de movimentos ou organizações da sociedade civil, sempre, a mesma base
social: setores do capital e do estamento político-burocrático. A
diferença dos
discursos, além de manifestar os distintos interesses de setores da burguesia e do
estamento político-burocrático, é fundamentalmente mero artifício eleitoral
para disputar os votos, nada expressam da real intenção e programa
de governo.
Como todas essas propostas não passam de
disputas entre pequenas variantes dos interesses dos burgueses, elas não vão além de mediações para a a
ampliação da exploração dos
trabalhadores e operários.
Por isso, a esquerda revolucionária não apenas deve
denunciar essas frentes e propostas de defesa da democracia, como ainda deve
aproveitar a conjuntura para a denúncia do Estado, do capitalismo e para
a propaganda da revolução proletária (aquela de Marx e Engels: contra
a propriedade privada, o Estado, a família monogâmica e a
exploração do ser
humano pelo ser humano).
Além disso, alguns outros pontos pode ser
assinalados:
1) As políticas desenvolvimentistas do recente
passado petista parecem estar enterradas por um longo período de tempo – se é que reviverão um dia.
Pois sua base de sustentação possível, a aliança do
estamento político-burocrático com a burguesia interna, foi destruída pela
ofensiva do grande capital internacionalizado e internacional. A recente aliança das novas
lideranças do mesmo
estamento político-burocrático (Maia, ACM Neto etc.) com o grande capital,
após a vitória de
Bolsonaro, não parece abrir muito espaço para um retorno do petismo e seu
desenvolvimentismo tupiniquim;
2) As políticas neoliberais de Guedes não contam com
oposição suficiente
para serem contidas e devem avançar nos próximos meses
tendo por principal dificuldade as negociações com os deputados,
senadores, prefeitos e governadores, por um lado e, por outro, entre as
diferentes facções do capital. Recentemente, por exemplo, as dificuldades de um acordo
entre o capital comercial, bancário e industrial ao redor da reforma tributária levou a
se alterar a agenda, dando preferência pela Reforma Administrativa, na
qual todos concordam em reduzir os gastos com o funcionalismo público;
3) Nas próximas eleições, os
trabalhadores continuarão sendo ofertados com meras candidaturas do “mais do mesmo”. Em todo o
caso parecem ser cada dia menores as possibilidades de uma reeleição de
Bolsonaro, tanto porque sua base parlamentar começa a se desfazer, quanto porque sua
popularidade já está em queda;
4) A faceta dita fascista de Bolsonaro não parece ter
condições de avançar muito além do que já fomos. Além da ingerência no
financiamento cultural e de propostas dificilmente aprováveis no
Congresso de reformas da educação, o governo não parece reunir forças políticas e
competência
gerencial do Estado para avançar em sua pauta mais conservadora. O que não significa
que a repressão a tudo o que for expressão dos anseios, necessidades e desejos
“dos de baixo” não possa vir
ser mais intensa e sistemática que no passado, contudo até o momento
isto não tem sido
constatado;
5) A não ser a pouco provável eclosão de uma
crise social de proporções explosivas nos próximos meses,
uma repressão generalizada às lideranças e grupos de esquerda não está também na ordem do
dia. O que parece nos conceder mais algum tempo para fortalecermos nossas
medidas de segurança e para intensificarmos nossa propaganda
revolucionária;
6) Como nunca em nossa história recente,
um tal descontentamento e desconfiança por parte da população em geral
para com os políticos, a política e o Estado abre a possibilidade
de uma propaganda revolucionária radical, qual seja, contra o Estado, a
exploração do ser
humano pelo ser humano, a família monogâmica (o patriarcalismo). Dada a
paralisia do movimento operário e dos trabalhadores, não há muito mais a
ser feito, nestas circunstâncias, do que a propaganda mais ampla e profunda
da plataforma revolucionária tradicional.
7) A organização possível e necessária dos
revolucionários, em nossos dias, é aquela adequada à realização das tarefas
colocadas pela conjuntura. Qual seja: organizar a resistência a uma
eventual onda repressiva e organizar a produção e divulgação de material
de propaganda revolucionária;
8) A ampliação da propaganda revolucionária requer,
desnecessário apontar, também a formação teórica e política dos
revolucionários. Um esforço que apenas pode ser coletivo na medida em que
houver indivíduos que estudam e fazem parte da coletividade.
A expressão “burguesia interna” tem sido emprega com grande felicidade por Armando Boito (Boito, Reforma e crise política
no Brasil, Ed.Unicamp/Unesp,
2018). Segundo o mesmo autor, uma expressão primeiro empregada por Poulantzas. Não conhecemos o autor grego, por isso não podemos avaliar a maior ou menor
proximidade de Boito para com ele e esclarecemos que adotamos esta sugestão no sentido preciso aqui exposto: para indicar uma fração da burguesia cuja reprodução ocorre nos marcos do país e cuja relação com o capital internacional é íntima, porém não imediata ou direta. Os “fenômenos” Oldebrecht, OAS e JBS estão entre os mais notórios, porém longe de serem os únicos.
O que não evitou, lembremos, que logo em seguida o
mesmo Zé Dirceu colocasse seus contatos internacionais do passado em que
participou da luta armada à serviço de grandes empresas mundiais. Cf., a
reportagem da Piauí, janeiro de 2008, “O Consultor”.
As classes sociais s
ão sempre e em todos os casos
determina
ção de reflex
ão, ou seja, apenas existem e s
ão
o que s
ão na complexa, mut
ável, rica e inst
ável
rela
ção que mant
êm entre si. Isto n
ão
cancela, claro est
á, o momento predominante desta rela
ção
(na sociedade capitalista, por exemplo, o momento predominante
é
a contradi
ção entre a burguesia e o proletariado), mas torna
esta atua
ção muito variada pois se realiza com distintas media
ções
a cada momento. A luta de classes n
ão pode ser reduzida ao momento
predominante da rela
ção entre as classes; contudo,
sem a atua
ção deste momento predominante as distintas determina
ções
e media
ções que se interp
õem na rela
ção
concreta entre as classes sequer poderiam existir. Em poucas palavras, a
particularidade concreta da luta de classes a cada momento
é
a particularidade de uma universalidade cuja ess
ência reside no momento
predominante desta rela
ção.
Verdade que alguma aristocracia operária já se fazia presente nos anos de 1950, mas sem a importância econômica e a atuação política que caracterizam a aristocracia operária que conhecemos a partir de meados de 1970.
A existência desta aliança terminou impulsionando um conjunto de teorias que a tomaram como a
causa e o fundamento da existência dos Estados de bem-estar. A aliança é uma consequência, é uma decorrência, do desenvolvimento do capitalismo que
passou a requerer, mormente depois da I Grande Guerra, da intervenção do Estado para postergar as crises cíclicas e mitigá-las depois de desencadeadas. Foram as necessidades internas à reprodução do capital que forjou esta aliança. A Escola da Regulação (Benjamin Coriat e Alain Lipietz foram muito citados entre nós) e Alain Bihr (Da grande noite à
alternativa, Boitempo, 1998)
são exemplos desse equívoco politicista de tomar o fundado (a aliança da aristocracia operária com o grande capital) pelo fundante (as
necessidades inerentes à reprodução do capital). Tratamos dessa questão em Capital e Estado de
Bem-estar: o caráter de classe das políticas
públicas (Instituto Lukács, 2013) em especial nas pp. 126 e ss.
.
Este
é um neg
ócio bastante lucrativo para
assalariados, a se confiar no relat
ório do Banco Mundial citado
pelo editorial de
O Estado de São Paulo de 30 de outubro
de 2019: dois ter
ços dos funcion
ários p
úblicos
do pa
ís estariam no topo 10% da distribui
ção
de renda.
Conferir, por exemplo, “Uma terra de dinastias”, The Intercept, Brasil, 1 de julho de 2019.
Estas cifras vieram de O Estado de São Paulo. A ONU avalia a corrupção no país como algo ao redor dos 200 bilhões de reais por ano.